Em 1990, Niemeyer desenhou e descreveu a baía de Guanabara vista de sua janela

Um croqui feito por Oscar Niemeyer (1907-2012) para a Folha, estampa a capa do caderno Turismo de 28 de junho de 1990, dedicado ao Rio deJaneiro. Além do desenho, feito da janela de seu escritório, de onde o arquiteto avistava a baía de Guanabara, ele escreveu um texto no qual enalteceu as belezas naturais da cidade e criticou a discriminação social, classificando-a como a razão de “tudo que de mal existe neste país”.


Considerado o maior arquiteto do país, Niemeyer foi ganhador do prestigiado prêmio Pritzker. Entre suas principais obras estão o parque Ibirapuera e o edifício Copan (ambos em 1951), o Palácio da Alvorada (1957), o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto, o Supremo Tribunal Federal (os três em 1958), o Palácio do Itamaraty e o Palácio da Justiça (ambos em 1962), o Sambódromo do Rio de Janeiro (1983), o Memorial da América Latina (1987) e o Museu deArte Contemporânea de Niterói (1991).

Niemeyer em 2011 – Rafael Andrade – 23.ago.11

Leia abaixo o texto:


Arquiteto vê a Guanabara de sua janela


OSCAR NIEMEYER
ESPECIAL PARA A FOLHA

” Estou no meu escritório de Copacabana, na avenida Atlântica. Começo a desenhar o croqui e me espanto – como se fosse novidade para mim – ao ver como é belíssima esta cidade.

No primeiro plano, é o mar –azul, verde, conforme o dia. Depois, o Pão de Açúcar e as montanhas. Ao longe, a Ilha do Meio, barcas e lanchas e, ao fundo, encobertos pela neblina, os morros que anunciam Niterói.

O panorama é tão lindo que sinto não dever repetir minhas críticas costumeiras. Reclamar dos que tanto desfiguraram esta cidade, lembrar como ela era melhor, acolhedora e tranquila.


Não voltar outra vez àqueles velhos tempos, à rua arborizada onde nasci. Esquecer o centro da cidade bom de passear, as ruas do Ouvidor e Gonçalves Dias, onde era possível andar sossegado, olhando as vitrines e as moças que passavam. Esquecer o Ponto Chique, a Lapa e o Café Lamas, que fazia parte da vida boêmia. E a volta para casa, em grupo, pelas madrugadas silenciosas, sem temores, do velho Rio.


Não falar tampouco dos blocos de concreto a esmagar a paisagem, de densidade criminosa responsável pela multidão aflita de hoje que reflete o “not to be involved” característico dos grandes centros urbanos.


O importante, diante de tanta beleza, era lembrar a natureza fantástica desta cidade e esse contraste extraordinário das suas montanhas com o mar. Dizer como ela resistiu a todos os absurdos do poder imobiliário, recordar como suas praias são lindas e os passeios que o Rio ainda oferece. O Parque do Flamengo, o Campo de Santana, o Passeio Público e o Jardim Botânico onde, quando ainda estudante, por ali andava de bloco na mão, procurando desenhar suas plantas tão bonitas nas minhas perspectivas de arquiteto. Como me fascinavam as palmeiras imperiais, altíssimas, eretas, procurando o céu; os espelhos d’água,as plantas aquáticas, as vitórias-régias; os tinhorões, as sempre-vivas abrotarem por toda a parte.


Lembrar a Barra da Tijuca que Lucio Costa urbanizou, sentir como aquela área imensa e plana acentua a grandeza da Pedra da Gávea e das montanhas que acercam; subir a Santa Tereza, caminhar pelas estradas de terra, ver como é exuberante a natureza deste país e seu clima variável, fresco em pleno verão.
Mas o Rio propicia outros passeios. Ir a Petrópolis, conhecer sua simplicidade e provincianismo, a cidade das hortênsias, como a chamavam, ou seguir para Niterói pela ponte e se emocionar com suas praias ainda brancas, intermináveis, onde os mais favorecidos exibem a força dos seus privilégios. E voltar a Niterói e de lá olhar mais uma vez este Rio de Janeiro espetacular, a brilhar como um colar de pérolas.


Mas, se procurei me deter apenas na natureza inigualável, não poderia me omitir sobre a discriminação social. Ela está presente em todas as nossas cidades. Dela decorre tudo que de mal existe neste país. Ela e a classe dominante que a provoca e explora, inculta e tão vulgar que, até hoje, não compreende que “ser é mais importante do que ter.”

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